Sérgio escrevera «[...] sobre os autores que mais fundamente satisfizeram as minhas «afinidades electivas» cuido dever chegar, mais ou menos, a três fontes: Platão, Spinoza e Kant»[1] e Caraça, na sua obra mais conhecida, Conceitos Fundamentais da Matemática[2], referindo-se ao primeiro dos anteriormente citados, diz: «A Ciência e Filosofia gregas, lendo pela cartilha de Platão, impuseram, a partir do dobrar do século V para o IV AC, duas limitações: – rejeição do devir como base de uma explicação racional do mundo; rejeição do manual e do mecânico para fora do domínio da cultura»[3] e afirma, alguns parágrafos adiante, que uma das influências da filosofia platónica no pensamento matemático traduz-se «no primado da figura e consequente degradação do número»[4]. Todos estas ideias expendidas por Bento de Jesus Caraça aparecem desenvolvidas no último capítulo do segundo volume dos Conceitos Fundamentais da Matemática sob o título Excursão Histórica e Filosófica.
Diga-se que a genealogia intelectual de ambos, pelo que se acabou de citar, fazia prever um embate de ideias cujo fulcro se situaria, além da importância e significado das ideias de Platão, no plano do entendimento da própria construção científica. É o que de facto vem a acontecer com o artigo publicado por Sérgio, Nota a um passo de uma introdução a Berkeley, criticando os pontos de vista expressos pelo autor dos Conceitos Fundamentais da Matemática, onde sustenta: primeiro, e ao abrir a polémica, «afirmar a ideia do primado do número significa precisamente repetir Platão»[5]; segundo, nas últimas páginas da sua prosa, os «permanentes (os objetos de pensamento [...]) que nos libertem da caótica sucessão dos Sensíveis [...] a Ciência é a busca de permanentes [...] e o permanente por excelência [...] é a relação a que o cientista dá o nome de lei»[6] e estas «relações permanentes» correspondem uma «concepção platónica» do conhecimento.
Estas são as duas ideias essenciais que constituem as pistas principais em torno dos quais se inicia a polémica, suscitando da parte de ambos os contendores uma argumentação cerrada que se espraiará por seis peças, onde se conclui por um confronto de dois modos diferentes de entender o Mundo. Contudo as alegações de ambos vão ocasionar explanações de conceitos matemáticos que, por sua vez, também serão objecto de altercações acesas.
[1] (Sérgio, 1938)
[2] Esta é a obra mais conhecida de Bento de Jesus Caraça e é constituída por três partes (Os Números, Funções, Continuidade), tendo as duas primeiras sido editadas, em volumes separados, na «Biblioteca Cosmos» (nos 2 e 18). A obra completa só foi editada, num único volume, após a morte do autor (Caraça, 1963). Desde a primeira edição do primeiro volume (Junho de 1941) até à edição integral (Outubro de 1963) fizeram-se dezasseis edições — cinco do primeiro volume (1941, 1942, 1944, 1944 e 1946), duas do segundo (1942 e 1944), todas em vida do autor, e nove do texto completo (1951, 1952, 1958, 1963, 1970, 1975, 1978, 1989 e 1998); talvez, no século XX, o maior sucesso editorial em Portugal de um livro de teor científico.
[3] (Caraça, 1942: 106), itálicos no original.
[4] (Ibid.:108) itálicos no original.
[5] (Sérgio, 1945: 42)
[6] (Sérgio, 1945: 47)