A polémica caminha para o fim, haverá mais uma réplica de cada um dos contendores, mas ambos sabem que as suas posições são irredutíveis, não adianta cavar mais trincheiras porque não há nada a ganhar. Na última peça do autor de Ensaios, Explicações para os que entendem a língua que eu falo, o título assume o reconhecimento que os campos em que ambos se situam têm perspectivas radicalmente diferentes.
Sérgio insiste nos seus argumentos e na defesa dos seus pontos de vista em resposta às observações de Caraça, mas há um dado novo: esclarece porque iniciou a polémica ou levanta o véu sobre a razão pela qual iniciara a sua nota com a citação retirada do volume número 18 da Biblioteca Cosmos.
Escreve ele, «Quando vi nos Conceitos fundamentais da matemática [determinados trechos] [...] do Professor Caraça (só agora falo neles, mas é por causa deles que vem tudo) eu vi aí um incitamento à incultura filosófica, à incompreensão da genialidade, à barbarização dos leitores»[1]; e os trechos, quais são? Foge-se à citação completa, mas repete-se uma parte (citando passagens do texto de Caraça[2]): «[...] Mas há no pensamento de Platão qualquer coisa de mais importante, de mais fundo, qualquer coisa de que a teoria das Ideias é o instrumento — a defesa contra a fluência e o carácter aristocrático do sistema — e isso fica [...] O pensamento grego dominante aparece invadido pelo horror da transformação, e de aí resulta o horror do movimento, do material, do sensível, do manual[...]»[3]; «Ora aí está... o nosso filósofo (Platão) conseguiu o seu objectivo! escamotear a transformação, o devir (falsa aparência!) pondo, entre nós e ele, a figura geométrica [...]»[4]. E Sérgio acrescenta a razão de ser do seu propósito: «[...] foi somente para dissipar a ridiculez vexante com que na prosa de Caraça me apareceu Platão — foi para isso, tão só, — que eu acudi à pena [...] ao cabo de contas (repito-o) essa aflitiva comicidade é o que me fez vir à liça, e ao tom caricatural dessa encenação de farsa é que pretendi arrancar o meu ilustre Amigo»[5].
Por outras palavras, aquilo que para Sérgio não passava de uma «teatralização de títeres, de uma filosofal galhofeira,— bonifratada», era a interpretação histórico-social da personagem que foi Platão, e das suas ideias, perspectiva da qual discordava abertamente. E Caraça, ao encerrar a discussão em Notas em Guisa de conclusão, lamenta veementemente «que a questão não tivesse sido posta logo no seu devido pé [...] teria sido mais leal para mim, para os leitores e para si próprio»[6]. Fim da polémica.
[1] (Sérgio,1946a: 229).
[2] (Caraça, 1942).
[3] (Ibid.: 103), in (Sérgio,1946a: 229), itálicos no original.
[4] (Ibid.: 109), in (Sérgio,1946a: 229).
[5] (Sérgio,1946a: 230).
[6] (Caraça, 1970b: 319). Escrita em 1946, mas não entregue na Vértice e só publicada em 1970 (Pedroso, 2007: 624) e que se reproduz abaixo, a partir do original dactilografado existente no espólio documental de BJC.