Uma visão de António Lobo Vilela sobre Bento de Jesus Caraça

Autor
António da Costa Lobo Vilela
Data

Intervenção no Colóquio Comemorativo de Os 70 anos dos Conceitos Fundamentais da Matemática

Minhas Senhoras e meus Senhores: 

Aproveito  esta  oportunidade  para  saudar  todos  os  presentes  e  em  especial  os  meus excelentes amigos João Manuel Caraça e João Tomás do Amaral. 
Bento de Jesus Caraça nasceu no dia 18 de Abril de 1901 e António Lobo Vilela no dia 25 de Fevereiro de 1902, ambos em Vila Viçosa, onde foram condiscípulos durante a instrução primária, altura em que começou a cimentar-se uma amizade que, posteriormente acrescida de admiração recíproca, perdurou até à morte do primeiro. 
Posso  referir,  como  testemunhos  dessa  amizade  e  admiração,  as  dedicatórias  de  Bento Caraça a Lobo Vilela em livros seus a este oferecidos, a partir de 1932, nos quais, “com um abraço”, o tratava por “velho amigo” e confessava a sua “viva simpatia e admiração pela sua inteligência”, e a “muita estima e apreço” que lhe votava; e, ainda, o facto de Lobo Vilela lhe ter  pedido  que  prefaciasse  o  seu  livro  Sobre  a  Didáctica  das  Matemáticas,  publicado  nos “Cadernos da Seara Nova” em 1937. 
Saliento um outro episódio revelador dessa amizade: no Verão de 1947 – o ano anterior à sua morte – Bento Caraça, acompanhado de sua mulher e de seu filho, passou uma temporada em Vale de Lobos, pequena povoação dos arredores de Lisboa, próxima de uma casa de Lobo Vilela, para que lhes fosse possível um convívio quase diário. 
Também  ambos  trilharam  caminhos  políticos  comuns,  designadamente  na  criação  do MUNAF (Dezembro de 1943), na participação no MUD (1945), do qual ambos fizeram parte da 3ª Comissão Central, que os conduziu à prisão pela PIDE (23 de Dezembro de 1946), bem como na preparação da candidatura de Norton de Matos à Presidência da República (1948).      Porque considero de grande relevância dar-vos conhecimento de um texto de homenagem a  Bento  Caraça,  escrito  por  meu  Pai,  destinado  a  publicação  na  “Revista  Alentejana”,  mas integralmente proibido pela Censura em Novembro de 1963, passo a lê-lo. 

UM CALIPOLENSE ILUSTRE 

Vila Viçosa pode ufanar-se de contar entre os seus filhos um dos homens mais eminentes do nosso tempo. Descendente de humildes camponeses, Bento de Jesus Caraça conseguiu um lugar  de  destaque  na  vida  intelectual  portuguesa  dos  últimos  anos,  pelas  suas qualidades excepcionais. 
Como professor universitário, empenhou-se em elevar o nível do ensino superior publicando as suas lições em obras que apontam directrizes modernas e conferem ao autor a responsabilidade  intelectual  que  não  existia  no  regime  da  “sebenta”  anónima  que  vigorava então. Em 1933 publica  um excelente volume  sobre Interpolação e Integração Numérica; o 1º  volume  das  suas  lições  de  Álgebra  e  Análise  aparece  em  1935  e  o  2º  volume  em  1940; entretanto,  publica  um  tratado  de  Cálculo  Vectorial,  em  1937.  Considerado  um  dos  nossos maiores matemáticos, foi eleito Presidente da “Sociedade Portuguesa de Matemática”, fundou e dirigiu o “Centro de Estudos de Matemáticas aplicadas à Economia” e colaborou activamente na “Revista de Economia”. 
Homem  do  povo,  conservou-se    sempre  fiel  à    sua  origem.  A    sua  experiência  pessoal tinha-lhe mostrado que a cultura intelectual é a única fonte viva de libertação humana e o seu alto  sentido  de  humanidade  levou-o  a  fundar  a  “Universidade  Popular  Portuguesa”,  onde realizou uma obra admirável de extensão universitária, procurando elevar o nível cultural das classes modestas. Com os mesmos intuitos de divulgação cultural, no mais amplo e autêntico significado da palavra, dirigiu a  “Biblioteca Cosmos” desde 1941 e publicou três preciosos volumes de iniciação matemática com o título de Conceitos Fundamentais da Matemática. A sua  conferência  sobre  A  Vida  e  a  Obra  de  Evaristo  Galois,  realizada  em  Maio  de  1932,  a convite da Associação Académica da sua escola, foi um acontecimento intelectual de grande relevo,  assim  como  a  que  realizou,  no  ano  seguinte,  na  “Universidade  Popular”,  sobre  A Cultura Integral do Indivíduo, e outra sobre A Arte e a Cultura Popular (1936). O pensamento científico de Galileu e a poesia de Rabindranath Tagore foram estudados também pelo Prof. Bento Caraça com a subtileza e a seriedade que punha em todas as manifestações do seu espírito. Colaborou ainda nas revistas “Seara Nova” e “Vértice”, e dirigiu, com José Rodrigues Miguéis, o semanário “Globo”. 
O seu idealismo,  compreensivo e generoso,  leva-o a condenar aqueles que “partidos das camadas ditas inferiores, se guindaram, umas vezes a pulso, outras em acrobacia de palhaços, a posições que deveriam utilizar para defesa dos bens espirituais e que só usam para trair os seus antigos irmãos no sofrimento”. 
Confiava muito nas virtudes populares. Em A Arte e a Cultura Popular escreve ele: “Na massa circulam mais francas, mais activas, aquelas grandes correntes de simpatia e fraternidade humanas, criadoras de possibilidades e actuadoras dos grandes empreendimentos”. São dele ainda estas palavras, que resumem admiravelmente a sua orientação pedagógica e o papel que atribuía aos elementos de escol: “Precisamos, para não trair a nossa missão, de forjar personalidades íntegras, de analisar o nosso tempo e de actuar como  homens  dele”.  Na  verdade,  começou  por  forjar  a  sua  própria  personalidade:  homem inteiriço,  austero  até  ao  sacrifício,  firme  sem  vacilações  naquilo  que  era  para  ele  ponto  de honra, corajoso sem alarde, bondoso até à renúncia, dotado de um poder de simpatia irradiante, indulgente, afável e modesto, quase parecia pedir desculpa de estar em desacordo com uma opinião alheia, tão profundo era o seu respeito pela liberdade de pensamento, o seu culto da tolerância. Indiferente às delícias de Cápua e aos cantos das sereias, preferiu viver uma vida agitada  e  tempestuosa  que  o  consumiu  precocemente.  Processado  por  motivos  políticos  e demitido  de  professor  universitário  em  1946,  manteve  sempre  o  mesmo  aprumo  moral,  até que uma crise cardíaca mais forte o prostrou definitivamente no dia 25 de Junho de 1948. O seu  funeral  constituiu  uma  grandiosa  manifestação  de  pesar  em  que  se  reuniram  muitos milhares de pessoas de todas as condições sociais, numa homenagem que nada pôde conter, formando uma compacta multidão que encheu as ruas do percurso e inundou o cemitério. Um auto-fúnebre da “Voz do Operário” transportou a urna, coberta de flores naturais, seguido por outro carro que transportava centenas de coroas, de ramos e de fitas, com  sentidas dedicatórias.  Deixou    viúva    a    senhora    D.  Cândida  Ribeiro  Gaspar  Caraça,  também licenciada  em  Ciências  Económicas  e  Financeiras  e  um  filho  de  três  anos,  João  Manuel Gaspar Caraça, que hoje frequenta o Instituto Superior Técnico e tem sabido honrar o nome que herdou. 

* * * 

Nasceu Bento Caraça no dia 18 de Abril de 1901, na Rua dos Fidalgos, numa dependência modesta do Convento das Chagas onde a casa de Bragança alojava alguns dos seus criados. Dois meses depois, seu pai entrou, como feitor, ao serviço do lavrador Raul  de Albuquerque e  instalou-se,  com  a  família,  na  “Herdade  de  Casa  Branca”,  da  freguesia  de  Montoito, concelho de Redondo. Ali viveu até aos 5 anos, o pequeno Bento. Nessa época passou pela “herdade”, em busca de trabalho, um homem chamado José Percheiro que sabia ler e escrever e levava consigo um livro de leitura escolar. Admitido entre os moços da lavoira, o Percheiro conservou-se ali por algum tempo. 
Bento Caraça ficou maravilhado com o sortilégio literário desse rústico que se avantajava sobre os outros, e quis aprender também aquela arte subtil de traduzir em sons e em ideias os misteriosos caracteres negros impressos no livro. Logo na primeira lição ficou conhecendo o abecedário  e  em  pouco  tempo  lia  correntemente  todo  o  livro,  com  espanto  do  improvisado mestre.  Não  tardou  muito,  porém,  que  o  José  Percheiro,  pouco  afeito  à  vida  sedentária, resolvesse  abalar  de  novo,  com  rumo  desconhecido,  deixando  o  livro  ao  seu  pequeno discípulo, depois de aconselhar a mãe a mandá-lo para uma escola porque, no seu entender, ele “não era uma criança como as outras”. O pequeno Caraça passava horas agarrado ao seu livro, relendo-o constantemente, a ponto de o ter decorado. A vivacidade do seu espírito e o entusiasmo  com  que  se  entregava ao  estudo  impressionaram  a  esposa  do  Sr.  Raul  de Albuquerque, que resolveu encarregar-se da educação do pequeno e levá-lo para Vila Viçosa, onde lhe destina um quarto na casa da Rua Câmara Pestana em que mora. Habituado à vida no “monte”,  o  pequeno  ficou  deslumbrado  com  o  casario  da  vila,  a  grandiosidade  do  palácio ducal, o alinhamento das ruas, a amplidão dos largos, a variedade e sumptuosidade das igrejas. Nunca imaginara que podia haver “tantos montes juntos!” Foi com esta frase que manifestou o seu espanto, quando atravessou a vila pela primeira vez. O padrinho recordava-a frequentemente. 
Fui condiscípulo de Bento Caraça na escola primária cuja professora era minha prima D. Ana da Silva Reis, senhora bondosa mas severa que, seguindo os preceitos da pedagogia da época, despertava as inteligências preguiçosas com ruidosas séries de palmatoadas, e deixava as  pequeninas  mãos  inchadas  e  entorpecidas.  O  Bento  Caraça,  aluno  excepcional,  deve  ter sido um dos raros discípulos de D. Ana que nunca experimentou a humilhação e a dureza da palmatória. Naquele tempo, a tabuada era recitada em coro, numa cantilena que acabava por 
ficar no ouvido de todos, mas, antes disso, era preciso que alguém a conhecesse já para dar as entradas:  “sete  vezes  oito,  cinquenta  e  seis;  sete  vezes  nove…”.  O  Caraça,  com  a  sua  voz suave e firme, era já, nessa época, um admirável “chefe de naipe”. Entretanto, a mestra estava sempre  atenta  para  descobrir  e  castigar  os  retardatários.  Nos  mais  relapsos,  a  aritmética entrava pelas palmas das mãos e não pelos ouvidos. 
oncluído,  com  distinção,  o  exame  de  instrução  primária,  Bento  Caraça  frequentou  o Liceu  de  Santarém  e  passou  depois  para  o  Liceu  Pedro  Nunes,  em  Lisboa.  A  morte  da madrinha causou-lhe profundo desgosto e não deixou de lhe trazer complicações porque as mensalidades tornaram-se mais escassas e menos regulares, obrigando-o a intensificar o seu trabalho  de  explicador.  Terminado  o  curso  dos  liceus,  ingressou  no  Instituto  Superior  do Comércio,  como  então  se  chamava  o  actual  Instituto  Superior  de  Ciências  Económicas  e Financeiras,  onde  foi  nomeado  assistente,  logo  em  1919.  Depois  de  completar  o  seu  curso com altas classificações e de reger cadeiras como professor auxiliar, foi nomeado professor extraordinário em 1927 e, finalmente, obteve o grau de professor catedrático, em 1930, num brilhante concurso de provas públicas. 
A paisagem alentejana e a vida humilde das herdades deixaram marcas fundas na sensibilidade  e  no  carácter  de  Bento  Caraça.  Viveu  sempre  enfeitiçado  pelo  seu  Alentejo, onde  passava,  quase  todos  os  anos,  alguns  dias  de  férias.  Quando  lhe  falavam  na  aridez alentejana,  ele  evocava,  triunfante,  o  ondular  das  searas  maduras  de  espigas  loiras,  o  oiro fulvo dos restolhos calcinados pelo sol adusto, a majestosa grandeza dos montados de sobro e azinho,  a  mancha  verde-escura  dos  olivedos,  os  horizontes  largos,  esfumados  de  azul,  que, desde menino, contemplava do “monte” barrados ao longe pela  cadeia cinzenta da serra de Ossa, onde se destaca a silhueta do Ramo Alto, que muitas vezes lhe serviu de mirante.      Conservo ainda na retentiva a imagem daquele pequenito que frequentava comigo a escola primária e se distinguia entre nós todos pela vivacidade do seu espírito quase tímido quando recebia louvores, sempre solícito em auxiliar os condiscípulos retardatários. O sorriso franco e confiante que lhe saltava dos lábios para os olhos, a simpatia que irradiava do seu rosto,  a curiosidade que se espraiava por todos os domínios do pensamento, acompanharam-no a vida inteira – uma vida breve, mas fecunda. 
Enbranquecera-lhe  o  cabelo  revolto,  vincara-se-lhe  o  rosto,  mas  conservou  sempre  a mesma  expressão  ingénua  de  menino,  confiado  na  bondade  natural  dos  homens,  porque encontrava  em  si  mesmo  a  fonte  perene  de  um  optimismo  reconfortante,  a  compensação moral de todas as decepções e angústias. Efectivamente, como poderia um homem que possui um  alto  padrão  de  valores,  e  vive  absorvido  neles,  descrer  da  sua  eficácia  prática?  As negações aparentes, longe de os invalidarem, só conseguem provar a sua excelsitude.     O optimismo de Bento Caraça era o reflexo de uma extraordinária riqueza moral. Nem as inquietações do pensamento, nem os embates da vida conseguiram destruí-lo: mesmo no leito da  morte,  o  seu  sorriso  não  murchou.  A  sua  formação  intelectual  não  lhe  permitia  o conformismo dos medíocres, nem a suficiência dos pedantes; a sua formação moral não lhe consentia o comodismo dos indiferentes, nem a subserviência dos ambiciosos. Por isso viveu intensamente, como poucos, o drama da nossa geração, dilacerada por inúmeras e pungentes contradições, entre duas guerras mundiais. 
A  sua  educação  científica,  aliada  ao  estudo  meticuloso  da  lógica,  da  epistemologia  e  às reflexões que a história da civilização sugere, forneceu-lhe os elementos e os métodos com que elaborou a sua concepção do mundo e da vida, conservando sempre a modéstia intelectual que é timbre dos homens verdadeiramente cultos. “Sei demasiado – escreveu ele – quanto são falíveis  ainda  os  juízos  mais  prudentes,  e  se  não  receio  o  erro,  é  só  porque  estou  sempre pronto a corrigi-lo”. Admirável conceito de um nobre espírito! 
A  cultura  aparece-lhe  como  “um  condicionador  e  correctivo  constante  da  marcha  da civilização”. Daí o apostolado pedagógico a que se entregou, descendo da cátedra, que tanto honrava, para fazer cursos livres, conferências e dirigir uma Biblioteca de cultura popular. Os seus  esboços  biográficos  de  Galileu,  de  Galois  e  de  Tagore,  revelam  bem  as  preocupações morais que associava à cultura. Mas, ainda mais valiosa e mais bela do que a sua obra, foi a sua vida, que a posteridade saberá glorificar devidamente quando nada possa embaciar-lhe a limpidez,  quando  o  tempo  tiver  diluído  a  influência  das  paixões  mesquinhas  no  juízo  dos homens. 
Gostaria de ver ainda, na principal avenida de Vila Viçosa, em lugar destacado, um busto em bronze de Bento de Jesus Caraça, voltado ao sul para que o sol alentejano, agradecido, possa beijar-lhe o rosto durante todo o seu curso diurno. 

Um desabafo: tenho sincera pena que meu Pai nunca tenha podido ver a estátua em bronze do seu querido amigo que se encontra hoje no local por ele idealizado. 

Este texto foi oferecido à viúva de Bento Caraça e a seu filho, tendo aquela expressado por carta a sua “comoção”, sobretudo por ter sido escrito “por amigo grande e da mais longa data”, “por mão e espírito elevados à mesma altura”. 

Muito obrigado a todos.